Um Estado soterrado!

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Maputo (Canalmoz) – A notícia é chocante. Sete cidadãos moçambicanos foram espancados pela população no distrito da Manhiça e foram enterrados vivos. Todos eles foram apanhados numa operação de vigilância popular que visava neutralizar ladrões de gado que vêm causando terror em quase toda a província de Maputo. Mas, até aí, e no jeito sádico moçambicano em que as mortes se tramitam como pães na padaria, nada de novo. Se calhar, desta vez, a crueldade está no enterrar um ser humano ainda com vida. É que o habitual protocolo popular envolve queima com pneus e gasolina.

Mas o detalhe de que, afinal, das sete vítimas, três eram agentes da Polícia da República de Moçambique mudou completamente o curso das coisas, quer na análise, quer na comoção geral sobre a tragédia. E os factos são estes: um grupo de oito elementos, que incluía quatro agentes da Polícia da República de Moçambique e três civis, foram apanhados pela população numa emboscada. Sete foram mortos, e um sobrou para contar uma história com todo o requinte possível de terror.

E o que escapou com vida, para bem da verdade, é coincidentemente um agente da Polícia, que contou aos mais próximos o milagre rocambolesco que o conservou como ser vivente.

A versão da Polícia sobre os factos é tão patética que não deixa margem para dúvidas de que a população foi deixada sem alternativas. É claro que condenamos a justiça pelas próprias mãos. É claro que repudiamos com toda as forças a operação tão desumana de enterrar um ser igual com vida. Tudo isso é condenável e está para lá do repugnante.

Mas essa consciência que condena não está dissociada de um cérebro que faz operações lógicas que obrigam a partir do pressuposto psicológico do que faz um homem sem qualquer diagnóstico de perturbação enterrar um ser semelhante. É esse exercício que é crucial para se extrair uma análise mais completa da tragédia.

Para já, está provado que os agentes da Polícia que foram emboscados e mortos não estavam em serviço. Mas estavam armados e fardados. E estavam fora da sua zona de jurisdição e sem autorização para o efeito.

Por outro lado, a população, farta de ver o seu gado a ser roubado sem que a Polícia esclarecesse um único caso, decidiu mobilizar-se e montar uma rede de vigilância popular que interceptou informação segundo a qual o bando que, uma semana antes, havia actuado na Moamba, estava agora nas imediações da Manhiça. Com toda a operação pormenorizada, decidiu montar uma emboscada e acertou em cheio. Apanhou o grupo e, à sua maneira, decidiu fazer justiça.

Ora, aqui depende muito do que queremos analisar. Podemos analisar a crueldade e emitir um certificado de selvajaria para a população, ou podemos analisar a alta traição que o Estado infligiu ao povo da Manhiça.

E preferimos ir pela segunda via. O que não enche os moçambicanos de comoção perante sete cidadãos enterrados vivos é o sentimento de traição do Estado e a acção em desespero em defesa da propriedade privada.

Qualquer cidadão honesto fica absolutamente irritado quando o fruto do seu trabalho lhe é subtraído fraudulentamente por via de roubo. Mas, ainda assim, qualquer cidadão honesto está psicologicamente avisado de que, em qualquer altura, pode ser roubado, quando o Estado através da Polícia, não estiver por perto. Disto, qualquer cidadão está implicitamente avisado e está quase psicologicamente preparado para um evento desses.

Ora, aquilo para o qual um cidadão honesto não está preparado que lhe possa acontecer é que venha a ser assaltado por agentes da Polícia ou por indivíduos que contam com os bons ofícios da Polícia. Isso não é só uma traição do Estado. É, acima de tudo, o rasgar do contrato social entre o Estado e o cidadão.

Quando um cidadão honesto adere às práticas civilizadas, tem a expectativa jurídica real na confiança que deposita no Estado. A sociedade decide cumprir a lei, aceitando não usar meios privados para fazer valer os seus próprios direitos, em troca de que o Estado se encarregue de fazer justiça, mas, antes de fazer justiça, o Estado garanta que as manifestações de injustiça não ocorram e, quando ocorram, as puna exemplarmente. Essa é a tarefa do Estado.

No contrato social que o Estado assina com a sociedade para que vigorem as normas de civilização, os cidadãos comprometem-se a ser honestos e cumpridores das normas e confiam ao Estado o monopólio da violência de todos os seus meios. É com base nesse contrato que o cidadão respeita e colabora com a autoridade.

Quando a autoridade rasga esse contrato através da actuação, por omissão ou acção, dos seus agentes, ao cidadão nada mais resta senão recuperar a violência que havia dado ao Estado, para uso exclusivo por parte deste. É que o cidadão sente-se na contingência de se defender, para continuar vivo e com dignidade.

Basta olhar a forma profissional como foi milimetricamente preparada toda a acção que acabou com a neutralização desse bando. A população fez um trabalho completo, que era de esperar que fosse feito pela Polícia, com a excepção do assassinato dos malfeitores. A prova de que a população não é gente de mal é que recolheu as armas dos agentes e foi entregá-las à Esquadra, porque não precisa de armas, só não queria conviver com polícias que eram bandidos.

Diga-se o que se disser, o que foi enterrado não foram os corpos de uns fora-da-lei, foi o Estado moçambicano e as suas atribuições. A população revogou a Polícia, demonstrando-a inútil e completamente divorciada dos valores da vida em sociedade. É o extremo da falta de confiança no Estado e nas suas instituições, que se movem e agem através dos seus agentes. É um certificado de inutilidade total passado pela população.

Agora, há sempre um expediente mais fácil de tramitar: prender os elementos da população que dirigiram tal acto. Mas isso não revoga a declaração feita por acção do povo. Neste momento, a população não sabe se os seus irmãos que agora estão presos estão sob custódia do Estado, ou sob custódia dos chefes de ladrões de gado. A reflexão que devemos fazer é: como é que chegámos aqui?

Do nosso lado, condenamos a acção popular, mas o culpado disto tudo é o Estado, que falhou em toda a sua linha. Os homens que hoje estão detidos não são criminosos, são vítimas do falhanço do Estado. Eles enterraram um Estado falhado! (Canal de Moçambique)

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