A relação dos cidadãos com os Bancos tornou-se uma plataforma de humilhação do cidadão. Está cada vez mais difícil abrir e movimentar uma simples conta bancária ou fazer outro tipo de operação com os Bancos porque foi sendo criado um conjunto de obstáculos, não contra o branqueamento de capitais, mas contra a boa-fé dos cidadãos.
E a consequência imediata disto é que qualquer cidadão começa a pensar duas vezes para se dirigir ao Banco. Agora só lá vai quem tem a capacidade suficientemente instalada para ser humilhado e passar por uma inquisição típica da Idade das Trevas. (…) E tudo isto se passa numa geografia que na mão esquerda levanta a bandeira de uma tal “inclusão financeira”. Como é que se pode pensar que se vai incluir as pessoas num sistema que, à partida, as detesta e as faz passar por rituais medievais de indignidade e burocracia?
Maputo (Canalmoz) – Em Outubro de 2022, uma Organização internacional denominada Grupo da Acção Financeira Internacional (GAFI), criada em Paris pelo países mais desenvolvidos, ou seja, o G7, e que passou a integrar agora trinta e sete países e os blocos políticos e económicos regionais do Mundo, colocou Moçambique numa lista de países considerados de alto risco, devido a deficiências estratégicas nos seus regimes de combate ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo.
Por uma questão de contexto, o GAFI tem como mandato com jurisdição à escala mundial a protecção do sistema financeiro e da economia em geral contra ameaças de lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo e da proliferação das armas de destruição em massa. Isso é feito através do desenvolvimento e da promoção de padrões internacionais de prevenção da lavagem de dinheiro e de combate ao financiamento do terrorismo e da proliferação das armas de destruição em massa.
A inclusão de um determinado país numa “lista cinzenta” tem como consequência, para além da reputação, o facto de esse país estar tecnicamente impedido de transaccionar com os países membros dessa Organização, e, acima de tudo, o fardo sobre a reputação, que inibe a entrada de investimento, principalmente vindo desses países ou blocos. Basicamente, quem é atirado para a tal lista é porque falha, ou falhou, a cumprir uma cartilha de recomendações dessa Organização.
O Governo moçambicano apanhou um susto valente com a notícia da inclusão do país na tal “lista cinzenta” e tratou imediatamente de elaborar um roteiro de purificação do corpo e submeteu-o a Paris (sede da Organização) com um forte compromisso de melhorar os seus mecanismos de combate ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo e de proliferação de armas de destruição em massa.
Qualquer cidadão com dois dedos de testa vai perguntar-se: financiamento do terrorismo, proliferação de armas de destruição em massa?
Bom, agora não interessa muito o que isso significa, o importante mesmo é captar essas frases bombásticas e entoar e perfilar no grupo coral para repetir o refrão. Mais a frente se vê.
O anúncio da colocação de Moçambique na lista dos que espalham armas de destruição em massa pelo Mundo foi feita pelo director da Organização, o singapurense Raja Kumar, que, no mesmo dia, juntou à lista a República Democrática do Congo e a Tanzânia.
O Governo colocou-se a trabalhar e angariou recursos que não tinha e, numa assentada, (i) aprovou a estratégia contra o branqueamento de capitais e o financiamento ao terrorismo num pacote em que (ii) procedeu à revisão da Lei do Branqueamento de Capitais, (iii) aprovou a Lei de Prevenção, Repressão e Combate ao Terrorismo e Proliferação de Armas de Destruição em Massa e (iv) aprovou um Regulamento do Registo de Entidades Legais.
A questão é muito simples: é fundamental e urgente aprovar e aplicar medidas de combate ao branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo? A resposta é imediata: sim. É tão urgente quanto o combate a todas as outras manifestações criminais que perturbam a paz social.
O único senão, nesta campanha toda, é a sua irrazoabilidade, desproporcionalidade e até irracionalidade. É que, em nome de tirar Moçambique dessa lista, Moçambique, desde então, tem gasto muito dinheiro e tomado medidas draconianas e completamente desproporcionais contra os seus próprios cidadãos e com eficácia zero sobre o verdadeiro objecto da campanha.
Uma campanha que visava dissuadir o branqueamento de capitais, tornou-se num instrumento de assédio, devassa e obstrução da paz dos cidadãos, concorrendo para a desmobilização dos cidadãos ao recurso do sistema financeiro formal. Dito isto em ouras palavras: em nome da acção para a saída da tal “lista cinzenta”, os cidadãos estão agora confrontados com um conjunto de medidas draconianas que mais os afasta do sistema financeiro formal, que agora está montado para tipificar a todos como bandidos até prova em contrário.
É uma verdadeira inversão do ónus natural da relação entre cidadão e instituições, onde o cidadão, logo à partida, é tratado como um maltrapilho que busca favores e a aprovação do sistema financeiro, ou seja, o sistema financeiro formal já não busca servir o cidadão, busca combater o cidadão num teste de capacidade de resistência que verifica até onde este cidadão é capaz de aguentar o incómodo e o assédio.
A relação dos cidadãos com os Bancos tornou-se uma plataforma de humilhação do cidadão. Está cada vez mais difícil abrir e movimentar uma simples conta bancária ou fazer outro tipo de operação com os Bancos porque foi sendo criado um conjunto de obstáculos, não contra o branqueamento de capitais, mas contra a boa-fé dos cidadãos.
E a consequência imediata disto é que qualquer cidadão começa a pensar duas vezes para se dirigir ao Banco. Agora só lá vai quem tem a capacidade suficientemente instalada para ser humilhado e passar por uma inquisição típica da Idade das Trevas. Passou-se agora a exigir um arsenal de documentos de uma irrazoabilidade tal em que a única forma que os cidadãos têm de se defender contra este ataque é retirar o seu dinheiro do circuito formal e transaccioná-lo por debaixo dos colchões, nos lenços, nas meias e nos sutiãs. É mais cómodo, seguro e dignificante do que usar um Banco que o vai humilhar.
E tudo isto se passa numa geografia que na mão esquerda levanta a bandeira de uma tal “inclusão financeira”. Como é que se pode pensar que se vai incluir as pessoas num sistema que, à partida, as detesta e as faz passar por rituais medievais de indignidade e burocracia? A quem querem incluir?
Como iremos explicar ao produtor de feijão em Mandimba, que quer abrir uma conta – e que provavelmente nem sequer tem Bilhete de Identidade, porque o Estado não é capaz de o prover – que toda a burocracia e humilhação que vai passar no Banco é porque, alegadamente, o dinheiro do seu feijão pode servir para construir fábricas de produção de armas de destruição em massa. Obviamente que este ancião produtor de feijão irá logo perceber que o engravatado que tem à sua frente é muito menos inteligente do que ele, que nem sequer foi à escola.
E é exactamente isso que se está a passar com o nosso sistema financeiro. As medidas que estão a ser tomadas dentro desse pacote são de um analfabetismo estrutural. Toda a estratégia de combate ao branqueamento de capitais passa completamente ao lado do contexto e do verdadeiro centro de branqueamento de capitais, que todo o moçambicano que respira sabe muito bem onde está a sua sede e com que instituições se oleia. Mas tudo indica que preferem o espectáculo barato em vez de atacar o verdadeiro problema.
Gostaríamos de saber se, para abrir uma conta bancária em Paris, onde está a sede do GAFI, ou em Singapura, o país do director do GAFI, é exigido o mesmo ritual medieval que eles mandam o Banco de Moçambique exigir aos moçambicanos. E também gostaríamos de saber se, nessas praças do Ocidente onde estão alojados os senhores do terrorismo e também estão alojados os complexos industriais de fabrico de armas de destruição em massa, existe igual humilhação exercida sobre os cidadãos desses países, em nome do combate a esses males. E também gostaríamos de saber por que é que Moçambique tem de ser submetido a toda esta irracionalidade.
Imagine-se só: o nosso Tribunal Supremo, um órgão de soberania, foi obrigado a aprovar uma insana directiva para os tribunais de escalão inferior acelerarem os julgamentos de casos de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo e proliferação de armas de destruição em massa, em prejuízo de qualquer outro tipo de julgamentos. Por outras palavras, havendo num tribunal, por exemplo, um caso de homicídio e um caso de branqueamento de capitais, os juízes devem julgar em primeiro lugar o caso de branqueamento de capitais ou de crimes de conexos.
A questão é: e os raptos, que são responsáveis pela fuga de agentes económicos moçambicanos e que têm um efeito directo na economia e deixam muita gente no desemprego? Nos raptos, há até cidadãos assassinados. Por que é que nunca vimos uma mobilização institucional e material igual? O que é importante, de facto, para os moçambicanos? Como é que fomos todos convencidos de que, do nada, em Moçambique há fábricas de produção de armas de destruição em massa? E devemos todos parar as nossas vidas para localizar essas fábricas e, se for o caso, vamos humilhar os cidadãos e colocá-los numa situação de total indignidade. Ainda estamos perante o branqueamento de capitais, ou estamos perante o branqueamento colectivo do nosso cérebro? (Canal de Moçambique)