Por Adelino Timóteo
Naquele dia abandonei a minha casa do Campo de Ourique, sem nenhum arrependimento. Caminhava decididamente para frente, olhando na mesma direcção e para trás, por cima dos ombros, com suspeita de que a minha mulher, inconformada, me estivesse a seguir.
Era uma madrugada aziaga e choviam raios de estrelas por todo o lado e as folhas secas chamuscadas pelo vento lastravam-se aos tropeções sobre os meus calçados e gabardina molhados. Foi no Jardim de São Pedro, com forte cheiro a rosas, que me tropecei com vultos e silhuetas, escondidos entre a vegetação. Eram fantasmas altos e elegantes. Uma circunstante, que adivinhou o meu estado de pânico e perturbação, quase me atropelou com a sua voz doce. Me disse que a frequência dos fantasmas era normal por aquelas paragens.
Dias depois, ao me ver sentado num banco daquele mesmo jardim, aquela senhora acercou-se de mim, estranhando a minha opção limite de vida. Ela pareceu-me conhecer de algum lugar. Me disse ser absurdo aquela mudança do comodismo que a existência me proporcionava, ao me transformar num sem-abrigo, numa alma penada, entre aqueles fantasmas, que disputavam com outros sem tectos uma meia dúzia de jardins, também os contentores de lixo, com cães vadios, ratos e gatos.
Muitos daqueles meus pares sem abrigos ao escalarem aí ganhavam mais um escalão de vida. Sem embargo, terá sido no Jardim de São Pedro de Alcântara onde me habilitei a aprendiz do tempo. Adquiri a mais alta qualificação, doutorando-me em enamoramentos. Muito do que eu sabia aprendi aí, como quem o capta dos livros e dos bancos da escola. Ao fim de cinquenta e oito anos, não podia ser pior.
Naquele Jardim, numa colina, com um parapeito donde se via uma das árvores da Penha da França, com folhas outonais, e mais ainda, barcos na franja costeira, em dias menos gris, inaugurei mais um capítulo de vital importância, onde eu era ainda virgem mundano. Eu me lembrava. Nos primeiros dias em São Pedro de Alcântara não se passara absolutamente nada, na minha vida de lobo estepário. Pelas manhãs o jardim estava quase que entregue ao abandono da bicharada, com gente silenciosa a guardar distância de mim. Pelas noites e até à madrugada a atmosfera ensombrava-se de fantasmas e aquela mulher, que me parecia, dava-se perfeitamente com eles.
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